quinta-feira, 21 de junho de 2007

Entrevista a Nadir Afonso

Nadir Afonso é nome de arquitecto. E é nome de pintor. Sem dúvida, uma referência na Pintura Portuguesa Contemporânea. Transmontano, natural de Chaves, onde nasceu em 1920. Diplomado em arquitectura pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, estudou pintura na École des Beaux-Arts de Paris, como bolseiro do Governo francês e colaborou com o arquitecto Le Corbusier (1946-48 e 1951). Durante os três anos seguintes trabalhou no Brasil com o arquitecto Óscar Niemeyer, colaborando na elaboração dos projectos de Brasília e do IV Centenário da cidade de São Paulo. Regressou em 1954 a Paris. Abandona em 1965 a arquitectura para se dedicar totalmente à Pintura, em cujos trabalhos é visível a sua formação de arquitecto. Nadir Afonso é um dos poucos, pouquíssimos artistas, que têm acompanhado a sua obra pictórica com a publicação de dezena e meia de livros de análise dos grandes problemas da Arte, nas suas perspectivas filosóficas, estéticas, até científicas e sociológicas, livros que são de uma inegável valia, não apenas para conhecimento da génesis da sua própria pintura, mas também da problemática artística, tão controversa nos tempos de hoje. No seu último livro, «Nadir Afonso. As Artes. Erradas Crenças e Falsas Críticas», editado por Chaves Ferreira–Publicações, o arquitecto-pintor aponta algumas das mais “erradas crenças e falsas críticas”. Fixa os “princípios” que regem a sua criatividade, em que os conceitos básicos de espaço, de geometria, de código estético e sentido artístico se entrelaçam e conjugam, tendo sido as cidades o “campus” preferido de realização dos seus estudos e produção das suas obras. O crítico francês Michel Gauzes escrevia em 1970: “Através das suas pinturas, Nadir Afonso exprime o porvir de um mundo em harmonia: L’aurore des villes, Le sentiment de demaim, Heliopolis, e retém do passado o lado positivo das civilizações, as épocas dos grandes complexos urbanos, o engenho dos seus construtores...” É fascinante ouvir um homem destes. Saber o porquê do seu percurso. Conhecer as suas escolhas. Os seus projectos. As leis da estética.
N. Lima de Carvalho

Quando se matriculou em arquitectura, queria mesmo ser arquitecto?
Se recuasse no tempo, voltaria a optar pela arquitectura?É evidente que não voltaria. Não me envergonho da minha obra de arquitecto, mas confesso que a minha paixão foi sempre a pintura. Um arquitecto está sempre condicionado.

Qual a função, o papel de um arquitecto nos nossos dias?
O papel de um arquitecto é seguir a lei que rege a arquitectura: a Perfeição, qualidade do objecto cuja função responde à necessidade do sujeito.

Conheceu o trabalho de Le Corbusier e Óscar Niemeyer. Qual o maior? O que os diferenciava?
Não sei responder. Lidei durante anos com qualquer deles e apenas compreendi que ambos se consideram superiores, o que é normal entre os homens.

Brasília, que Niemeyer desenhou, não é uma cidade mais para marcianos do que para homens?Brasília é bem deste planeta. Quando em 1986 voltei a Brasília o que mais me surpreendeu e desolou foi encontrar a mesma e persistente falta de um milhão de árvores ali previsto.

Que razões o levaram a deixar a Arquitectura e a voltar-se para a Pintura?
A razão essencial reside no facto de ter erradamente reconsiderado nas palavras daquele funcionário, acima citado.Mas eu nunca deixei a pintura, eu fui sempre pintor. Mesmo quando trabalhava com Le Corbusier, as minhas manhãs eram dedicadas à pintura. Ele também pintava e lá simpatizou comigo, concedendo-me as manhãs livres para pintar, e ainda por cima sem me descontar nos honorários.

A Pintura proporcionou-lhe tudo quanto dela esperava?
Tudo aquilo que, sem sabermos bem o quê, continuamos esperando.Na Pintura ainda há algo a esperar e por descobrir, alguma corrente nova, alguma linguagem diferente?Não me parece. Na sua essência, as leis que regem a obra de arte são imutáveis. Assistimos, isso sim, a uma espécie de reciclagem: adaptação às novas tecnologias. Neste campo e com os novos avanços tecnológicos penso que poderá haver grandes possibilidades a serem tentadas na arte cinética.

Por que escolheu o abstraccionismo geométrico?
Não há escolha. A meu ver, há mais ou menos intuição dessas leis imutáveis de fonte geométrica, a que chamo “morfometria”. A representação dos objectos é secundária na obra de Arte. O abstraccionismo geométrico não é mais que uma elevação a um estado de absoluto das qualidades de harmonia, essa sim, específica na obra de Arte.

E que atractivo encontrou na pintura cinética?
O atractivo está numa tentativa de conciliar, no mesmo objecto, o ritmo da sua forma com o ritmo do seu movimento. Na altura em que me debrucei na arte cinética, os recursos tecnológicos não permitiram grandes avanços nessa área.

Em determinada altura da sua carreira começou a praticar uma pintura que chamou de Espacillimité. Em que consiste?
Espacillimité é justamente esse encontro com a relação espaço-tempo. Ele consiste numa pintura encadeada em movimento cíclico.A Pintura tem leis?A Pintura tem leis. De modo esquemático: Perfeição, Evocação, Originalidade e Harmonia. As leis primordiais estão na perfeição do objecto e na harmonia do espaço geométrico, e a lei capital, reside nessa “Morfologia” que as correlaciona.Então o que é a Pintura?A Pintura, na sua essência, é o objecto duma intuição anormal, hipersensível às leis morfométricas, quantitativas, matemáticas, sendo estas, por sua vez e por conseguinte, únicas, exactas, constantes e transmissíveis.

E a Estética?
A Estética devia ser aquilo que nunca foi: o estudo das leis que regem a obra de Arte e não aquele verbalismo que não rima com coisa nenhuma.

Acabou de publicar mais um livro, a juntar aos 20 que já escreveu. Que nova mensagem ou mensagens nos traz esse livro?
A nova mensagem “insiste no que repito ao longo da minha vida e ninguém vê ou não que ver” no subtítulo desse livro escreve: “Erradas Crenças e Falsas Críticas”.

Enumere algumas dessas erradas crenças e falsas críticas, que considera mais gritantes.
“A Arte é o espiritual tornado sensível”, Hegel; “a linguagem da alma”, René Huyghe; “a Arte é um mistério”, Einstein. As afirmações destes génios, no que se refere à Arte, não rimam com coisa nenhuma.

As novas expressões artísticas, como o vídeo, a fotografia e a instalação, têm lugar ao lado da pintura, do desenho ou da escultura?
Todas essas expressões são obras de Arte, só porque os seus autores assim entendem?
Têm lugar ao lado da pintura, do desenho ou da escultura, desde que o seu autor saiba lidar com as leis que tudo regem. O mal está aí: na falta de compreensão das normas da natureza, o autor tem tendência em considerar sagrada a desordem do seu espírito.

Diga-nos algo sobre o “fascínio das cidades”. O que o fascina nas cidades?
Aqui arriscamos o “golpe de teatro”. Pelos mais obscuros impulsos, todas as cidades me fascinam e nenhuma delas expresso, posto que na elaboração da obra, só temos olhos que fixam a morfometria, o seu absoluto.

E a sua paleta? Alguns pintores acomodam-se com quatro ou cinco cores suas preferidas. A sua paleta é, porém, muito rica e variada. Quais são as suas cores preferidas?
Novo golpe. Todas as cores são minhas preferidas, pois todas elas são passíveis de melhor jogar numa composição, excepto, por associações de ideias, o verde, se fui mordido pela serpente, e o vermelho, se fui envolvido no sangue. Assim subjectivada, qualquer cor ou forma é ressentida no erro. Compreendamos esta coisa muito simples: as leis que regem a obra de Arte são aquelas mesmas, imanentes da natureza preexistente e nada têm a ver com os nossos (sejam eles os mais sinceros) estados de alma.

Que cidade portuguesa tem mais qualidade arquitectónica, se é que alguma tem qualidade arquitectónica?
Aqui, a mesma dificuldade ao tentarmos uma resposta objectiva. Muito mal distinguimos as qualidades arquitectónicas ou urbanísticas que respondam às necessidades dos homens de épocas, lugares, meios e culturas, por vezes diferentes daquelas que em dada situação, pessoalmente, nos tocam. E aqui reside, na sua essência, a diferença entre a arquitectura regida por leis evolutivas e as Artes regidas por leis constantes, exactas, absolutas no espaço e no tempo. E talvez compreendamos melhor a razão por que só a geometria, ainda que de modo subconsciente, tanto atrai o artista.

Que cidades mais gostaria, ainda, de pintar?
É-me indiferente. Entre o viver e o pintar, é da minha casa que vejo todas as cidades. A correspondência que estas mantêm comigo apenas se expressa, supondo eu, numa evocação ou uma originalidade particular e não numa harmonia que irradie propriamente da cidade, posto que esta harmonia, que eu considero a essência da Arte, existe como especificidade latente em toda a geometria, nas formas da Natureza.

Um dia escreveu: “O artista não realiza nenhum trabalho enquanto o trabalho não realiza o artista”. Já realizou todos os seu trabalhos (artísticos) ou ainda lhe faltam alguns projectos?
Sim. Esperemos que ainda me faltem alguns circuitos de cidades em volta do meu quarto.

A Arte em Portugal está em estado de graça ou está muito mal da sua saúde?
A Arte em Portugal continua, como é normal, em estado de confusão. Seria necessário, antes de mais, educar os educadores.

E como vai de saúde a sua Fundação, em Chaves, sua terra natal?
A Fundação em Chaves prossegue segundo as posses, a boa vontade da edilidade e a boa fé dos seus munícipes, mas devagar.

Em Portugal a cultura artística é uma desgraça, não é? Se tivesse poderes para melhorar a nossa cultura artística, que medidas tomaria?
Não me parece que haja qualquer coisa de justo a fazer. Por fatalidade, não é o verdadeiro artista aquele que mais se mexe nem o mais lúcido esteta aquele que melhor encontra as medidas a tomar. Sendo a política quem pode e manda, é ela o agente que se envolve do manto da Arte como de um sudário.

Já tem “in pectore” o tema do próximo livro?
Já tenho o tema do próximo livro: “a Beleza na Arte” e “o Tempo no Universo”, sendo dado que a significação de ambos os termos carece, a meu ver, duma mesma correcção insistente. Tanto a beleza como o tempo devem ser tratados a partir de um complexo de factores; a dificuldade consiste, por um lado, em compreender a conjugação dos universais – extensão e duração – com os factores particulares – espaço e movimento – afectos ao nosso planeta, assim como a sua cadência cíclica, de cujo complexo resulta e se gera o cômputo do tempo. Por outro lado e de modo semelhante, a dificuldade reside na complexidade do sentido do “belo”. Toda a filosofia nos fala da “beleza” sem distinguir as suas coordenadas analíticas – perfeição, evocação, originalidade e harmonia – e sem alcançar a sua síntese estética quer na Natureza quer na Arte.

Não queria ser arquitecto. Queria ser pintor.
Ao ler o meu pedido de inscrição nas Belas-Artes do Porto, um funcionário daquela Escola comentou: “Então o senhor tem o curso dos liceus e vem inscrever-se em Pintura? Oh, homem, vá para arquitectura”... e eu, erradamente, reconsiderei!

Entrevista publicada no «O Primeiro de Janeiro» e «Notícias da manhã»

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