A minha vida é sobretudo relevante pelo que não acontece... é uma espécie de anti-autobiografia.
Nasci em Chaves em 4 de Dezembro de 1920. Meu pai era poeta e chamava-se Artur Maria Afonso e minha mãe Palmira Rodrigues Afonso.
Sou filho segundo, meu nome seria Orlando se, no dia em que meu pai me registara, não tivesse encontrado um cigano que sugeriu chamar-me «Nadir» – «Muito Orlando será ele», disse o cigano.
Aos quatro anos pinto o meu primeiro «quadro»: um círculo vermelho na parede da sala de minha casa, de tal modo era perfeito que ninguém se atreveu a repreender-me. «Tu pintaste a parede Riri?» perguntou minha mãe. «Eu seria capaz de fazer uma roda tão bem feitinha?» respondi. E toda a minha existência se processou sob o signo do ritmo e da precisão geométrica.
Toda a actividade se concentra então na prática da pintura (2º prémio no concurso «Qual é o mais belo trecho da paisagem portuguesa?», 1937); nesse sentido me dirigo à Escola de Belas-Artes do Porto munido de meia folha de papel selado em que pedia a inscrição no curso de pintura.
Porém, aqui, segui o conselho errado do funcionário que me convenceu a inscrever-me em arquitectura. E assim surgiram novas dificuldades e novas desacertos. Eu não desenhava arquitectura; «pintava» arquitectura. Ficou conhecida a história do estirador que o Mestre Carlos Ramos me ofereceu e que devolvi (a mesa foi levada à Escola de Belas-Artes pelos meus próprios braços) quando, coincidente com a oferta, a classificação baixou.
Irredutível ao ensino, era pelo contrário, o contacto, directo com a natureza que me atraía. O Porto, com a sua arquitectura barroca, debruçada sabre o Douro impressiona-me. Percorria a cidade pintando: «Igreja dos Grilos», «Clérigos», «Batalha», «Cais da Ribeira», «Vila Nova de Gaia»...
Estreitando as relações com os meus colegas das Belas-Artes, fiz parte do grupo dos Independentes do Porto expondo em todas as suas exposições até 1946.
A minha obra «A Ribeira» do Porto deu entrada no Museu de Arte Contemporânea de Lisboa, tinha eu apenas 24 anos. No entanto a longa perseverança da minha obra afirma-se, paradoxalmente, através duma sucessão de desastres.
Em Abril de 1946 então com 25 anos de idade, parti para Paris. Levei algumas das últimas telas feitas em Portugal e que terminaria em França; eram sobretudo óleos do período irisado. Transporte difícil no pós-guerra! Ainda não se tinham restabelecido a ligação de comboios entre a Espanha e a França, atravessei pela via-férrea entre a estação de Irun e de Hendaye com mala, rolo de telas... e a pé. Uma vez em Paris obtive por intermédio de Portinari uma bolsa de estudo do Governo francês. Matriculei-me no curso de pintura da École des Beaux-Arts, habitava no Hotel des Mines no Quartier Latin e frequentava os foyers de estudantes. Pela primeira vez, por assim dizer, tomo contacto com o grande mundo da Arte.
Colaborei com o arquitecto Le Corbusier. Longos anos se passarão divididos entre um trabalho de arquitectura (a bolsa de estudo durara apenas um ano) e um trabalho de pintura. Le Corbusier, conhecendo a minha paixão pela pintura concedeu-me as manhãs livres para pintar (sem me descontar no ordenado). Servi-me algum tempo do atelier de Fernand Léger e comecei, pouco a pouco, a encontrar forma no abstraccionismo geométrico.
Os fundamentos imutáveis da estética revelam-se com mais clareza; o meu conceito das origens, da essência da arte, recebe, na assiduidade do trabalho, novas orientações.
No ano de 1948 defendi tese na cidade do Porto com um projecto executado em Paris sob a orientação de Le Corbusier onde ressaltam afirmações que geram grande polémica: «A arquitectura não é uma arte» é o tema da minha tese. «A arquitectura é uma ciência, uma elaboração de equipas» e como tal, um meio de expressão que não me satisfaz.
Nos princípios de 1949 retirei-me de Paris e passei um ano no meio das minhas pinturas; desenvolvi uma série de antigos estudos inspirados no barroco português que resultaram no meu período barroco a que se seguiu o período egípcio. Mais tarde alguém injustamente encontrou influência de Dewasne. É claro que não importa se um Nadir desconhecido seja o influente ou o influenciado. Voltei a trabalhar com Le Corbusier.
Em Dezembro de 1951 embarco em Génova para o Rio de Janeiro. Aí comecei um período de colaboração com Óscar Niemeyer; mais de três anos de dupla actividade: a necessária arquitectura e a obcecante pintura. Participei na elaboração do projecto da Exposição Comemorativa do IV Centenário da Cidade de S. Paulo.
Regressei a Paris, retomei o contacto com os artistas orientados na procura cinética e desenvolvi estudos de estética e pintura que chamei «Espacillimité». Fiz parte do grupo da Galeria Denise René, expus alguns dos meus trabalhos juntamente com Vasarely, Mortensen, Herbin, Bloc.
Paris é o grande centro da arte e por isso também acérrimo meio de promoção, de confrontação e de luta. Tudo vi, ouvi e conheci; desde a prevenção de Dewasne: «Aqui cada pintor é um pirata com um punhal entre os dentes!». Compreendo, sim: devíamos participar na vida artística de Paris, mas... não posso; o meu passado vivido «detrás dos montes», a minha educação simples contrária ao jogo social das conveniências, das considerações forçadas e dos seus intteresses subjacentes, me impedem.
Consciente da minha inadaptação social e da minha dificuldade de integração no meio artístico, refugio-me pouco a pouco num grande isolamento; acentuo o rumo da minha vida exclusivamente dedicada à criação duma obra. Desenvolvo estudos sobre a geometria que considero a essência da arte.
Uma primeira publicação – La SensibilitéPlastique – aparece em 1958 em Paris graças ao apoio de Michel Gaüzes, Madame Vaugel e Vasarely.
Na vanguarda da arte mundial expus em 1958 no Salon des Réalités Nouvelles um «Espacillimité» animado de movimento (agora exposto no Museu do Chiado) e realizei em 1959 a minha primeira grande exposição antológica, na Maison des Beaux-Arts de Paris, fruto de difíceis anos de trabalho.
Verifica-se desinteresse em relação às minhas exposições no Porto e em Lisboa. Mas eu não procurava nem a celebridade nem a fortuna. Se fossem esses os meus objectivos há muito, teria já abandonado a minha incessante procura da Arte.
Em 1965 abandono para sempre a arquitectura para me consagrar inteiramente à sua minha obra.
A elaboração e publicação duma estética absorvem-me totalmente. Sucedem-se as viagens entre Chaves e Paris onde me encontro com Roger Garaudy, Vasarely, Gaüzes. Trabalho por indicação de Garaudy em Toulouse com o esteta Pierre Bru com quem revi a forma sintáctica dos meus estudos.
Em 1968 Vasarely escreveu ao editor suíço Marcel Joray uma carta em que lhe faz uma descrição do meu trabalho. Uma vez tomado conhecimento do manuscrito a resposta de Joray é positiva; ela será entusiasta após o conhecimento da obra que o documenta.
Les Mécanismes de la Création Artistique aparecem em público; é a primeira grande monografia duma série que irei perseverantemente elaborando.
Nunca corri, como diz Marcel Joray: «a cuidar dos seus interesses», mas a arte, qual corrente caudalosa, ninguém a pode suster.
Definitivamente isolado a minha existência torna-se menos adversa. Pinto e escrevo num regular e crescente sossego. Exponho em Lisboa, Porto, Paris e Nova Iorque e um pouco por todo o mundo e sem partidos políticos fui condecorado e homenageado.
Publico em 1983, «Le Sens de l’Art», a que se seguem vários outros títulos, monografias e textos estéticos onde destaco: «Da Vida à Obra de Nadir Afonso», «Universo e o Pensamento», «Van Gogh», «O Fascínio das cidades», «Da intuição artística ao raciocínio estético», «As Artes: Erradas Crenças e Falsas Críticas» e tenho quadros espalhados por vários museus mundiais.
Não pretendo ser cientista; no entanto li, escrito por outros, o conteúdo da minha obra «Universo e o Pensamento» de especulação filosófica nas primeiras páginas dos jornais e o plagiador muito cumprimentado; assisti a intelectuais apresentarem ideias minhas sem as respectivas aspas ou referirem o meu nome de autor.
E como sempre errante e desprendido da tudo, muitos quadros desapareceram nomeadamente o meu auto-retrato, aos dezanove anos e emprestado e fotografado para «O Primeiro de Janeiro». Soube mais tarde que o quadro se encontrava em casa de Manuel de Azevedo, – do mesmo nome do director Janeiro – tentei reavê-lo mas nunca me foi devolvido. O mesmo aconteceu com o quadro muito reproduzido: Vila Nova de Gaia.
Se uma lição de moralidade pudesse ser entendida nas minhas (e noutras) memórias de artista, talvez fosse finalmente reconhecido por lei o fracasso das instituições culturais. Apoia-se e promove-se, não os verdadeiros criadores mas indivíduos insinuantes, fura-vidas que gravitam à volta das instituições. Tenho consciência que a minha obra é única, original e de dimensão universal, mas reparo que «bons artistas» não são aqueles que possuem uma obra válida mas aqueles que imitam o que de vanguarda se faz lá fora e privam com aqueles que os promovem.
Quatro temas que se conjugam e desenvolvem nos nossos três precedentes estudos e nos quais as teorias físicas da relatividade, as concepções filosóficas de idealistas e de materialistas e as teses biográficas sobre Van Gogh, são repostas em questão. Imodéstia minha? Sou português, transmontano e filho das Terras de Barroso. Aprendi de tradição a ser humilde, a louvar os mestres e a viver até aos oitenta e seis anos na simplicidade que a minha inferior condição sempre me concedeu. Um balanço da minha existência e dos trabalhos a que me devotei ressoa-me subitamente absurdo.
Assim termino o último livro ainda por publicar: «Estou certo que tarde ou cedo serão acareados à evidência do que aqui deixo escrito; e mais uma vez, espero que qualquer credenciado cientista eleve, em seu nome, estes escritos, ao nível dos postulados. Todo o cientista credenciado que tenha mais possibilidades do que o autor, em promover a divulgação da obra, será mais facilmente reconhecido».
Nadir Afonso
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